Um dos pontos polêmicos relacionados à intersecção entre o direito e a contabilidade se refere ao conceito de receita, mais especificamente, se receita contábil e receita jurídica seriam termos equivalentes. A discussão não está limitada aos contornos teóricos, havendo grande consequência prática seja para a contabilidade, seja para o direito, mormente no que se refere à incidência de tributos.
Uma boa fonte de estudo da natureza de uma receita são os livros de Teoria da Contabilidade. Nesse texto, mencionaremos a definição trazida por Hendriksen e Van Breda[1], para quem, em termos genéricos, receita é “o produto gerado por uma empresa”, o que gera um aumento do lucro. O normatizador contábil, contudo, optou por uma definição mais objetiva e pragmática do que é considerado receita no processo contábil, sem descrever exatamente sua natureza, conforme extraímos do CPC 00 (R2) – Estrutura Conceitual para Relatório Financeiro:
Receitas são aumentos nos ativos, ou reduções nos passivos, que resultam em aumento no patrimônio líquido, exceto aqueles referentes a contribuições de detentores de direitos sobre o patrimônio.
Podemos observar que a norma contábil não define exatamente o conceito de receita, mas sim menciona os efeitos que ela provoca sobre ativos e passivos que devem, ao final, resultar no aumento do patrimônio líquido, ressalvadas as contribuições dos sócios em favor da entidade.
Todavia, essa definição pragmática não resolve os problemas envolvendo o tema na contabilidade. Mais do que determinar o que é receita (ou que efeito causa no patrimônio), é fundamentar definir em que momento ela deve ser reconhecida e qual o critério de mensuração de sua grandeza. Não há exatamente uma exigência ontológica sobre o momento do reconhecimento da receita. Nelson Carvalho e Carlos Henrique Silva do Carmo[2] aduzem que – do ponto de vista econômico – a receita pode ser reconhecida antes do ponto de transferência; durante um período que inclui o ponto de transferência ou após este ponto.
Para ilustrar esse ponto os Autores mencionam como exemplo uma nova obra sobre o personagem “Harry Potter” em que a mera posse do ativo, mesmo antes de comercializada, já caracteriza a riqueza do proprietário. Notem que o raciocínio empregado envolve reconhecer a certeza de que aquele bem será comercializado[3], não havendo esforço de venda e que, portanto, permitiria reconhecer a riqueza (e, consequentemente, a receita) antes da transferência do bem. O mesmo, segundo os autores, ocorreria com ouro e certos metais preciosos.
A contabilidade, contudo, elegeu outro momento para o reconhecimento da receita. Em linhas gerais, o CPC 47 adotou o momento da satisfação da obrigação assumida pela entidade. Tomemos como exemplo uma empresa que se obrigou a entregar ao seu cliente um carro: a receita será reconhecida no momento do cumprimento da obrigação, assim entendido quando houver a transferência do controle do bem para o cliente. Veja, nesse sentido, o Item 31 do CPC 47 – Receita de Contratos com Clientes:
31. A entidade deve reconhecer receitas quando (ou à medida que) a entidade satisfizer à obrigação de performance ao transferir o bem ou o serviço (ou seja, um ativo) prometido ao cliente. O ativo é considerado transferido quando (ou à medida que) o cliente obtiver o controle desse ativo.
Nem sempre, entretanto, a receita contábil decorre de contratos com o cliente, mas sim de outras situações cotidianas na contabilidade. Iremos mencionar algumas, onde nos deparamos com situações que se subsomem ao conceito de Receita do CPC 00, acima mencionado, mas são origem de grande controvérsia jurídica:
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Perdão de dívida (diminui o passivo e aumenta o patrimônio líquido);
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Reconhecimento de ativo decorrente do direito ao indébito tributário (aumenta o ativo e aumenta o patrimônio líquido);
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Mensuração ao valor justo (aumenta o ativo e aumenta o patrimônio líquido);
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Reversão de provisão (diminui o passivo e aumenta o patrimônio líquido).
Podemos concluir que todos esses exemplos se enquadram no conceito de receita contábil e aqui podem surgir dúvidas acerca da incidência de alguns tributos. Com efeito, a receita é fato gerador do PIS e da COFINS e elemento positivo que aumenta o lucro, impactando a base de cálculo do imposto de renda e da contribuição social. Portanto, é fundamental sabermos se uma vez certificado que estamos diante de uma receita contábil, a consequência será reconhecê-la também para fins jurídicos.
Sem grandes mistérios podemos responder negativamente essa questão. O conceito de receita contábil e jurídico se identificam em larga medida, porém há casos de dissonâncias onde o reconhecimento contábil não terá como consequência automática seu reconhecimento para fins tributários. É nesse sentido que Ricardo Mariz de Oliveira[4] afirma: “a despeito de diferenças específicas, inclusive quanto às espécies de receitas, o conceito contábil no geral não contradita o conceito jurídico de receita…”
São vários os autores que esclarecem essa diferença. Por exemplo, Marco Aurélio Greco[5] aduz:
“Não é a maneira pela qual vier a ser contabilizada determinada figura que irá determinar a sua natureza jurídica para fins de incidência. A contabilidade retrata a realidade, mas não cria realidades jurídicas novas, desatreladas da substância subjacente”.
Novamente Ricardo Mariz de Oliveira[6] em linha semelhante esclarece:
“Logo, o mero registro contábil de determinado valor em contas de resultado, destituído de substância econômica efetiva, não constitui receita para fins tributários, tendo em vista que a contabilidade não é suficiente para determinar a ocorrência do fato jurídico tributário (fato gerador em concreto), limitando-se a registrar e refletir os eventos ocorridos na realidade factual, de acordo com a linguagem contábil.”
Outra não é a posição do Supremo Tribunal Federal quem dentre outras decisões, assim se manifestou no julgamento do RE n. 606.107-RS, de 22.5.2013:
“ainda que a contabilidade elaborada para fins de informação ao mercado, gestão e planejamento das empresas possa ser tomada pela lei como ponto de partida para a determinação das bases de cálculo de diversos tributos, de modo algum subordina a tributação. A contabilidade constitui ferramenta utilizada também para fins tributários, mas moldada nesta seara pelos princípios e regras próprios do Direito Tributário. Sob o específico prisma constitucional, receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições”
Importante dizer que não se trata de desmerecer o conceito contábil de receita ou desconsiderar a relevância do reconhecimento da receita na contabilidade. Em verdade, trata-se de admitir que a contabilidade e o direito, embora intimamente conectados, possuem critérios e objetivos próprios, registrando os eventos cada qual com sua lente.
Consequentemente, cabe ao operador jurídico desenvolver conhecimento robusto que lhe permita, em cada caso, analisar se o reconhecimento de uma receita pela contabilidade terá impacto tributário por se tratar, igualmente, de uma receita jurídica. Poderá, por exemplo, reconhecer (acertadamente) que a reversão de uma provisão não é fato gerador do PIS e da COFINS, tampouco tem efeito na base de cálculo do IRPJ e CSLL, porquanto não se integra ao patrimônio da pessoa jurídica como elemento novo e positivo. Envolve, na verdade, de mera reversão de uma despesa contábil que, igualmente, não teve impacto tributário no passado.
Do mesmo modo pode-se dizer sobre a receita de valor justo, que o operador do direito poderá concluir (corretamente, a nosso ver) envolver receita não realizada, não devendo ter impactos tributários em razão do quanto disposto no artigo 43 do Código Tributário Nacional.
São poucos exemplos, mas que tem como propósito demonstrar ao leitor que o reconhecimento de uma receita contábil não necessariamente impõe consequências jurídico-tributárias para a empresa. Muito embora quase sempre esse efeito esteja presente, há casos em que se apresentarão divergências, seja porque não estamos diante de uma receita do ponto de vista jurídico, seja porque o momento de reconhecimento diverge do que impõe o sistema tributário, ou, também, porque os valores são divergentes em razão de critérios destoantes entre ambas as ciências.
Em suma, o propósito do presente texto foi permitir a reflexão sobre os conceitos contábeis e jurídicos de receita, ainda que de forma breve e objetiva, alertando para a importância de o profissional da área jurídica desenvolver ferramental que lhe habilite a analisar cada caso de forme segura, sabendo que há convergências, mas também divergências entre a contabilidade e o direito.
Aliás, essa é a beleza desse mundo que chamamos de “Controvérsias Jurídico-contábeis”!
Forte abraço!
Professor Fabio Silva
[1] Teoria da Contabilidade. Eldon S. Hendriksen, Michel F. Van Breda; tradução de Antonio Zoratto Sanvicente – 1º ed. – 10. Reimpr – São Paulo: Atlas, 2012. Capítulo 11
[2] Nelson Carvalho; Carlos Henrique Silva do Carmo. Reconhecimento Contábil de Receitas: o que vem (ou pode vir) por aí. In: Controvérsias Jurídico-contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2012, p. 281
[3] Se duvidam da precisão do exemplo oferecido pelos Autores sugiro lerem a notícia disponível no seguinte link: https://www.theenemy.com.br/games/setimo-harry-potter-quebra-recordes-e-causa-confusao
[4] Ricardo Mariz de Oliveira. Fundamentos do Imposto de Renda (2020). São Paulo, SP: IBDT, 2020. v.1 Página 113
[5] GRECO, Marco Aurélio. “Cofins na Lei 9.718/98 – variações cambiais e o regime de alíquota acrescida”. Revista Dialética de Direito Tributário n. 50. São Paulo: Dialética, 1999, p. 81.
[6] Pesquisas Tributárias, Série CEU/Magister 02, coedição de Centro de Estudos Tributários e Lex Magister, Porto Alegre, 2014, p. 175