Alfredo Augusto Becker foi um tributarista notável e, dentre outros feitos, ficou marcado por cunhar a expressão “Carnaval Tributário”, nome de um de seus livros, cuja leitura é obrigatória, seja você tributarista ou não. Diante de um emaranhado de normas jurídicas tributárias e a completa inexistência de aplicação coerente que ofereça mínima segurança jurídica aos contribuintes, não é difícil compreender a força da expressão.
O famigerado cadastro municipal de contribuintes adotado pelas Prefeituras nos oferece um bom exemplo de como o sistema tributário brasileiro é moldado para fortalecer esse “Carnaval Tributário”, criando um ambiente hostil aos contribuintes, ao invés de uma atmosfera cooperativa entres eles a as autoridades fiscais[1].
Toda problemática surgiu – supostamente – em razão da prática de planejamentos tributários abusivos por iniciativa dos contribuintes e que funciona da seguinte maneira: o contribuinte tem sede no município “A” que cobra ISS – Imposto sobre Serviços de 5% sobre o valor dos serviços, ao passo que a cidade vizinha “B” aplica alíquota de 2%. Como o ISS é devido – regra geral – no local do estabelecimento prestador, a empresa está obrigada a recolher o tributo para o município “A”, aplicando a alíquota de 5%.
Visando reduzir sua carga tributária – desejo de 11 em cada 10 empresários – o contribuinte percebe que uma boa solução seria ter sua sede localizada no munícipio “B”, reduzindo em 3% a alíquota do ISS, o que lhe geraria uma boa economia. Entretanto, seus clientes e colaboradores estão todos localizados no município “A” e não seria conveniente mudar o local da sua sede.
Eis que, diante do inconveniente, o contribuinte tem a seguinte ideia: alugar uma pequena sala ou até mesmo um endereço que sirva unicamente para fins cadastrais, mas sem necessidade de estrutura física no munícipio “B”, mantendo sua estrutura operacional toda no munícipio “A”. Basicamente, a pretensão é emitir nota fiscal do município “B”, com alíquota de 2%, recolhendo o montante devido nesse local, muito embora a estrutura operacional e seus clientes estejam situados no município “A”.
Ciente desse tipo de estratagema, o munícipio “A” lança medida visando impedir o referido “planejamento fiscal”: caso o tomador esteja localizado no município “A”, ao contratar prestadores de serviço que, em tese, estejam localizados no município “B”, deverão exigir o comprovante de cadastramento de prestador de serviços cuja sede esteja localizada fora do munícipio. Caso esse comprovante cadastral não seja apresentado, o tomador de serviços deve reter 5% de ISS sobre o valor a ser pago ao prestador, recolhendo o montante para o município “A”.
O problema dessa medida é que ela acarreta a bitributação da receita do prestador dos serviços. Isso porque, a retenção do ISS pela fonte não desobriga o contribuinte de recolher o ISS devido ao município onde localizada a “sede” da empresa, o que significa um recolhimento adicional de 2% ao município “B”.
Não precisamos ir muito além para concluirmos que essa é uma situação inadequada, afinal, o contribuinte deve recolher o tributo apenas ao município competente que, pode ser “A” ou “B”, mas jamais ambos. O município “A”, contudo, não se sensibiliza com a situação, argumentando que o cadastro está disponível para todos os contribuintes localizados em outras cidades, bastando que seja comprovado esse fato, o que normalmente envolve o envio de documentos como contas de luz, telefone, folha de pagamento, fotos, dentre outros que tem o objetivo de demonstrar que, realmente, a sede da empresa é no município “B”. Em síntese, a alegação do Município “A” é no seguinte sentido: o contribuinte de boa-fé, que não está praticando qualquer planejamento tributário abusivo, não será penalizado, pois facilmente obterá o comprovante cadastral.
O problema é que essa “lógica” tem quatro pontos a serem considerados: primeiro que o cadastro nem sempre é tão simples assim, muitas vezes havendo exigências que fogem da razoabilidade; segundo que se o contribuinte presta serviços em diversos municípios espalhados pelo país há um sério inconveniente de ter que fazer tantos cadastros quanto exigidos, muitas vezes com exigências que destoam por completo, aumentando o custo de conformidade fiscal; terceiro que não cabe ao contribuinte comprovar que não está realizando qualquer prática abusiva, mas sim ao município, diante de qualquer desconfiança, realizar as diligências necessárias nesse sentido; o quarto e último ponto é que a exigência acarreta ou pode acarretar, na prática, a bitributação do contribuinte.
Pois bem! O primeiro município a lançar mão do cadastro do prestador de serviços foi São Paulo e a exigência acabou sendo questionado por centenas de contribuintes, cujos argumentos jurídicos são mais sofisticados do que os quatro pontos mencionados acima, sendo seguro porém dizer que representam a mesma lógica.
Eis que o caso chegou ao STF – Supremo Tribunal Federal que fixou a seguinte tese:
“Tema 1020: É incompatível com a Constituição Federal disposição normativa a prever a obrigatoriedade de cadastro, em órgão da Administração municipal, de prestador de serviços não estabelecido no território do Município e imposição ao tomador da retenção do Imposto Sobre Serviços – ISS quando descumprida a obrigação acessória”.
A decisão foi proferida em sede de repercussão geral, o que significa dizer que vincula todo o Poder Judiciário. Dizendo de modo simples, isso significa que diante de um caso discutindo o tema, a decisão será no sentido de reconhecer a ilegitimidade da exigência do cadastro municipal.
Referida decisão provocou alívio em milhares de empresas que lidavam com a inconveniente e custosa exigência de diversas prefeituras espalhadas pelo Brasil, pois a iniciativa paulistana foi devidamente copiada por outras cidades que perceberam que a medida – ainda que inconstitucional – é muito efetiva do ponto de vista arrecadatório.
Ocorre, contudo, que estamos no país do “Carnaval Tributário”, onde qualquer comemoração por parte dos contribuintes pode se mostrar precipitada. Isso porque a Prefeitura de São Paulo, não obstante a decisão da Suprema Corte optou – ao menos momentaneamente – por manter a exigência do cadastro. A irrazoável atitude é baseada na premissa de que a repercussão geral do julgamento do STF obriga apenas o Poder Judiciário, não vinculando o Poder Executivo municipal que pode manter a exigência enquanto o caso não for julgado em ação direta de inconstitucionalidade, por exemplo.
Em suma, a exigência é inconstitucional, conforme diz a Suprema Corte, mas o contribuinte que quiser afastar a exigência deverá propor ação judicial para ver reconhecido o seu direito, ao menos segundo o entendimento da Prefeitura de São Paulo. Portanto, esse é o cenário e lhe impõe, se estiver nessa situação, a consulta de um advogado para avaliar a necessidade de interposição de medida judicial para afastar a exigência.
Como notamos, Alfredo Augusto Becker tinha razão: vivemos um verdadeiro “Carnaval Tributário”. Faltou apenas o saudoso jurista dizer que o enredo é trágico!
Forte abraço!
Professor Fabio Silva
[1] Para uma discussão mais aprofundada sobre compliance cooperativo indico dois estudos de minha autoria disponíveis: https://link.springer.com/article/10.1007/s12232-019-00321-0 e https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/12/12136/tde-13082015-091911/pt-br.php