Umas das grandes controvérsias do Direito Tributário brasileiro refere-se a correta interpretação da expressão “destinatário da mercadoria” contida no artigo 155, § 2º, IX, “a”, da Constituição Federal. Não envolve questão trivial, afinal, nas operações de importação de mercadorias o ICMS é devido ao estado “destinatário da mercadoria”. Portanto, dúvidas acerca da correta interpretação do termo acarreta disputas infindáveis entre os Estados, ávidos por aumentar a arrecadação tributária local.
Como sabemos, por força do artigo 146, inciso I da Constituição Federal, compete a lei complementar dispor sobre conflitos de competência. No que toca ao assunto ora em discussão, a Lei Complementar 87/1996, em seu artigo 11, inciso I, alínea “d”, dispôs que, no caso de importação, o local da prestação é o do estabelecimento onde ocorrer a entrada física da mercadoria.
O problema é que os estados interpretam a Lei Complementar e a Constituição Federal de acordo com seus próprios interesses, o que gerou infindáveis disputas acerca do efetivo local do destinatário da mercadoria, sendo o critério de “entrada física” polêmico, especialmente porque o ICMS incide sobre operação jurídicas de transferência de propriedade (há controvérsias teóricas, mas essa é a posição majoritária), de modo que o destino físico pode não corresponder ao local do estabelecimento importador.
Vejamos um exemplo: uma empresa situada em São Paulo realiza a importação de uma máquina que será vendida para um cliente no Ceará. Por razões logísticas a empresa paulista resolve realizar a importação pelo Porto do Pecém, localizado no Ceará, entregando a mercadoria ao seu destinatário final. Nessa hipótese duas interpretações surgem sobre em qual local deve ser recolhido o ICMS relativo à importação:
A- O imposto é devido no Ceará, com base na LC 87/1996, que prevê que o tributo é devido ao local do estabelecimento onde ocorrer a entrada física, no caso, no estado do Ceará;
B- O imposto é devido em São Paulo, afinal o ICMS incide sobre operações de circulação (que envolve a transferência de propriedade) de mercadorias e o adquirente jurídico encontra-se em São Paulo. Ceará, na verdade, receberá ICMS como destinatário de uma segunda operação, de circulação interestadual de mercadorias, em relação a venda interna.
Muito embora eu me alinhe com a interpretação “B”, é necessário considerar que ambas as hipóteses podem ser habilmente defendidas por juristas experientes e abrem brechas para muitas disputas entre os estados e, em muitos casos, tem como consequência a dupla tributação da importação, com o ICMS sendo recolhido para dois entes federativos diversos.
Se em condições normais o cenário é terreno fértil para controvérsias jurídicas e conflitos de competências, imagine em um contexto de guerra fiscal, onde os estados reduzem suas alíquotas visando atrair importadores a se estabelecerem em seu território visando abocanhar uma fatia maior do ICMS, num processo que internacionalmente é chamado de “race to the bottom”.
Vamos adicionar mais um ingrediente nesse imbróglio: sabendo que o ICMS de outro estado é menor, as empresas podem legitimamente mudar seu estabelecimento de local, o que seria o exercício absoluto do seu direito de livre iniciativa. Contudo, há aqueles que optam por estruturas mais “agressivas”, utilizando estruturas “meramente jurídicas” em outros Estados para se valer do benefício ou mesmo optando por um tipo específico de importação que lhe garanta a possibilidade de aproveitar a alíquota reduzida.
Sobre os tipos de importação, basicamente há 03 modalidades:
- Importação Direta: o próprio importador, beneficiário final da importação, realiza em nome próprio e com seus próprios recursos a importação;
- Importação por conta e ordem: envolve uma verdadeira prestação de serviços, em que uma empresa adquirente contrata a importadora (trading) para realizar a importação e o despacho aduaneiro em seu nome e com o uso dos seus recursos (nome e recursos da adquirente). Notem que a importadora é verdadeira mandatária da adquirente, prestando um serviço referente à importação;
- Importação por Encomenda: é aquela em que uma empresa (encomendante) solicita à importadora (trading) a realização de importação de produtos que, posteriormente, será a ela revendido. Nesse caso, a importação é realizada em nome da importadora e com seus próprios recursos, embora a lei permita o adiantamento financeiro por parte da encomendante.
Novamente vamos nos valer de um exemplo para que a problemática seja mais bem compreendida, supondo que prevaleça a tese de que “B” acima mencionada. Nesse caso, se a empresa realizar a importação por conta e ordem, contratando uma trading company – situada em um estado que disponha de benefício fiscal de ICMS na importação – para realizar a operação e determinar a entrega da mercadoria em seu estabelecimento, localizado em outro estado, onde é devido o ICMS? No estado onde localizada a trading ou onde localizado o destinatário final?
Notem, portanto, que são muitas as controvérsias que decorrem da própria natureza do ICMS, um imposto de competência estadual e com incidência parte no estado de origem e parte no estado de Destino, o que proporciona um ambiente fértil para conflitos de competência de toda sorte.
Finalmente, em 2020 o Supremo Tribunal Federal (ARE 665134) analisou a questão é fixou a seguinte tese sobre o Tema 520:
“O sujeito ativo da obrigação tributária de ICMS incidente sobre mercadoria importada é o Estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da mercadoria, com a transferência de domínio.”
Como podemos notar, prevaleceu a interpretação “B” acima mencionada, ou seja, o critério de definição do sujeito ativo (estado que deve receber o ICMS importação) é aquele do destinatário legal e não físico. Em outras palavras, no exemplo que trouxemos inicialmente, o tributo seria devido ao estado de São Paulo.
Sobre as modalidades de importação o STF ainda esclareceu, em sede de Embargos de Declaração, quem são os destinatários legais das operações e, portanto, quem é o sujeito ativo da operação (onde deve ser recolhido o tributo), em cada hipótese de importação, conforme abaixo:
- na importação por conta própria, a destinatária econômica coincide com a jurídica, uma vez que a importadora utiliza a mercadoria em sua cadeia produtiva;
- na importação por conta e ordem de terceiro, a destinatária jurídica é quem dá causa efetiva à operação de importação, ou seja, a parte contratante de prestação de serviço consistente na realização de despacho aduaneiro de mercadoria, em nome próprio, por parte da importadora contratada;
- na importação por conta própria, sob encomenda, a destinatária jurídica é a sociedade empresária importadora (trading company), pois é quem incorre no fato gerador do ICMS com o fito de posterior revenda, ainda que mediante acerto prévio, após o processo de internalização
Dada a importância do conteúdo dos Embargos de Declaração, é válido colacionarmos a ementa completa. Vejamos:
“1. Tese jurídica fixada para o Tema 520 da sistemática da repercussão geral: “O sujeito ativo da obrigação tributária de ICMS incidente sobre mercadoria importada é o Estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da mercadoria, com a transferência de domínio.” 2. Em relação ao significante “destinatário final”, para efeitos tributários, a disponibilidade jurídica precede a econômica, isto é, o sujeito passivo do fato gerador é o destinatário legal da operação da qual resulta a transferência de propriedade da mercadoria. Nesse sentido, a forma não prevalece sobre o conteúdo, sendo o sujeito tributário quem dá causa à ocorrência da circulação de mercadoria, caracterizada pela transferência do domínio. Ademais, não ocorre a prevalência de eventuais pactos particulares entre as partes envolvidas na importação, quando da definição dos polos da relação tributária. 3. Pela tese fixada, são os destinatários legais das operações, em cada hipótese de importação, as seguintes pessoas jurídicas: a) na importação por conta própria, a destinatária econômica coincide com a jurídica, uma vez que a importadora utiliza a mercadoria em sua cadeia produtiva; b) na importação por conta e ordem de terceiro, a destinatária jurídica é quem dá causa efetiva à operação de importação, ou seja, a parte contratante de prestação de serviço consistente na realização de despacho aduaneiro de mercadoria, em nome próprio, por parte da importadora contratada; c) na importação por conta própria, sob encomenda, a destinatária jurídica é a sociedade empresária importadora (trading company), pois é quem incorre no fato gerador do ICMS com o fito de posterior revenda, ainda que mediante acerto prévio, após o processo de internalização. 4. Hipóteses de importação definidas no acórdão embargado que abrangem as importações envolvendo mais de um estabelecimento de uma mesma sociedade empresarial. Inexistência de omissão. 5. Independência nos provimentos jurisdicionais prestados por esta Corte no julgamento do feito em questão, no que diz respeito a resolução do mérito do caso concreto, com a homologação do pedido de renúncia à pretensão formulada na ação, de um lado, e o julgamento de mérito em abstrato da questão jurídica da questão jurídica com repercussão geral reconhecida, de outro. 6. Impossibilidade jurídica da aplicação da tese fixada em repercussão geral para o caso concreto. Contradição verificada. 7. Embargos de declaração da empresa acolhido. Embargos de declaração do ente estatal acolhido em parte.”
A decisão foi proferida na sistemática de repercussão geral, o que significa dizer que vincula todo o Poder Judiciário, de modo que os demais processos que envolvam a mesma discussão deverão seguir a mesma interpretação dada pelo STF, o que traz mais segurança jurídica aos contribuintes. Contudo, vale lembrar, que as autoridades fiscais não estão vinculadas a essa decisão, de modo que nada impede que os contribuintes sejam envolvidos em controvérsias, ainda que adotem a interpretação jurídica que prevaleceu no Tribunal.
Não se pode negar que a decisão traz mais clareza sobre o ICMS e o local onde o tributo deve ser recolhido. Contudo, há quem alegue que a interpretação irá incentivar a realização de importações do tipo “por encomenda” por meio de trading companies localizadas em estados que forneçam benefícios fiscais relativo ao imposto. Seja como for, doravante, certamente o contribuinte possui maior segurança sobre o tema ao seguir as diretrizes traçadas pelo STF.
Forte Abraço!
Professor Fabio Silva